terça-feira, 14 de junho de 2011

A crise da geografia sem espaço, dos geógrafos sem território. 10 anos sem Milton Santos.

É interessante como algumas pessoas rejeitam ideias e autores, mesmo sem conhece-los. Falo sobre as "críticas" que já ouvi sobre Milton Santos. Uma delas quando ministrava uma aula em um curso de formação de professores no Piauí, e um deles relatou como um professor da UFPI, mesmo sem conhecer Milton Santos, nem ter lido sua obra, o criticava. Acho isso, no mínimo, desonestidade intelectual.

 

 Milton Santos foi um exemplo de intelectual disciplinado e dedicado (não há outro modo de produzir mais de 300 artigos e 40 livros, fora os cursos, seminários, congressos organizados...etc). Por ter sido rigoroso e crítico, os fracos o confundem como arrogante. Ledo engano em um mundo no qual o monolitismo das ideias é péssimo para o avanço da ciência, por isso as discussões e críticas, como sempre defendeu  o professor, são sempre bem vindas. Entretanto, na maioria das vezes, o desrepeito e a grosseria gratuitos tomam o lugar do debate firme e sério. 

Não é só no Piauí que este absurdo acontece. Na USP, minha atual universidade (onde curso o doutorado), onde Milton Santos trabalhou durante décadas até seus últimos dias, ele não foi reconhecido como grande autor e pensador, apesar de alguns ainda fazerem uso politico (e oportunista) de seu nome e de sua imagem. Basta ver como se comportam determinados professores quando há algum evento em sua homenagem, em comparação com a memória acerca do comportamento desses mesmos professores quando Milton Santos com eles convivia no departamento de geografia uspiano.

Falar mal é muito fácil. Agora, ler um texto, reconhecer as principais influências teóricas do autor. Discutir seus fundamentos, sua força (ou fraqueza) na explicação do real, e propor algo novo, isto dá trabalho. E exige dedicação, seriedade e honestidade intelectual. Alguns professores e estudantes, em muitos momentos, se esquecem disto na universidade. 

Já faz 10 anos que Milton Santos nos deixou, e um intelectual como ele faz muita falta. Principalmente pelo estado indigente em que se encontra a geografia brasileira (salvo raras exceções). A péssima geografia dos livros didáticos (uma mistura de tudo, para não dizer quase nada). A confusão que é feita nos departamentos e laboratórios de pesquisa onde, em nome da "ciência de síntese", trabalho de muita competência feito pelos geógrafos clássicos, é permitido que se coloque no bojo da geografia qualquer coisa, esquecendo-se do seu objeto de estudo - o espaço geográfico e todos seus compartimentos espaciais (território usado, regiões, fronteiras, lugares, limites...). Talvez seja por isto que a sociedade não respeita os geógrafos brasileiros (novamente, há algumas exceções...mas poucas).

A profunda renovação epistemológica que Milton Santos possibilitou à geografia é trabalho de gigantes. A revisão de conceitos, e sua organização em um sistema coerente de pensamento, atualizado com o  funcionamento do mundo contemporâneo, é trabalho exemplar que demorará muito para ser superado. Mesmo grandes geógrafos brasileiros já reconhecidos não produziram uma obra comparável, e que contemplasse fundamentos teóricos e de método capazes de servir para  produzir conhecimento novo, e operacionalizar o trabalho de outros geógrafos menos experientes. Também não há notícias da fundação de uma nova escola geográfica, como fez Milton Santos.

Na universidade há ainda um problema maior, que é a confusão da militância com a ciência. É claro que é preciso  que se discuta o engajamento da universidade na solução dos males da sociedade, e talvez a desigualdade brutal que caracteriza o nosso país seja um deles. Agora, em nada contribui  para a discussão social, em nome de uma ciência engajada, a produção de ciência social de péssima qualidade,  onde discursos militantes e vazios, deslocados da realidade em curso em nosso país, atropelam o conhecimento dos fatos e processos, e assassinam o espaço geográfico. A verdadeira militância geográfica, capaz de acelerar mudanças, nasce do real entendimento do funcionamento do mundo. É assim que poderão ser criadas e alimentadas ideias de um mundo novo.

Quando, na atuação do geógrafo, o espaço geográfico é abandonado, há a produção de algo que não é conhecimento geográfico, pois não há geógrafos sem território, nem geografia sem espaço. Surge uma outra coisa, muito bizarra para ser definida. Talvez seja esta a crise da atual produção geográfica brasileira.

(acesse a biografia e o currículo do professor Milton Santos aqui: http://miltonsantos.com.br/site/biografia/)